O Abandono

Textos diversos, relacionados à animais ou não.

O Abandono

Mensagempor Link » Dom Set 06, 2009 02:08

O abandono...

"Vago neste lugar qualquer. De um canto ao outro.
Caminho de tantinho em tantinho. Meus pés ardem.
Já não levanto a cabeça. Dói. Tudo dói. O piscar dos olhos.
O respirar fraquinho. Não compreendo. Coisa alguma.
Até antes disto tinha um lugar quente para dormir.
Comida para este vazio dentro de mim. Era latir e correr no barulho feito.
Afago quando eles apareciam no pátio. Espichada na grama em dia ensolarado.
Encolhida na caixa de papelão, no frio e na chuva, tranqüila e sonhando.
De repente uma coceira atrás da orelha desmoronou os fatos e meu futuro.
A parede trincando e a rachadura esfarelou tudo que era concreto.
Era só uma coceirinha de matar o tempo. Foi aumentando.
Nas duas orelhas. Nos cotovelos. Na barriga. O pêlo começou a vagar por outro espaço.
Saiu para passear e nem me perguntou o que eu achava.
Eles encontraram as primeiras falhas. E passaram a olhar-me mais vezes ao dia.
Pela manhã, à tarde e às vezes, à noite, antes da janta. Puxavam minhas orelhas.
Viravam-me de barriga para cima. E falavam, sussurravam.
A mulher colocava a mão na cabeça e balançava-a de um lado pro outro.
Parecia ter também coceira dentro da cabeça. Eu estava alegre.
Mais vezes juntos. Os buracos pipocavam no meu pêlo. Um a um estouravam.
Rapidamente. A mulher já não me olhava. O homem largava a comida num canto.
A água no outro pote e ia embora sem um afago. Desafago, eu saberia depois.
Ali era somente um desacato sobrando no momento.
No passar da claridade para a escuridão, o homem chegou bem perto da caixinha e me chamou.
Colocou a coleira no meu pescoço e puxou-me. Abriu a porta de trás do carro e ali me deixou.
Fiquei deitada entre tantas piscadelas.
Às vezes sentia uns trancos, até pulava.
Eu levantava, curiosa, tentando ver o olhar dele, escorregava e voltava a deitar.
O barulho do carro. Os trancos terminaram. E o homem abriu a porta.
Me puxou pela corda com força. Ali no meu pescoço a indiferença dele.
Ele tirou a coleira. Não disse nada. Sequer olhou-me. Deixou-me nas suas costas.
Entrou no carro e partiu. Olhando para os lados, o escuro.
Um canário, de ruídos desconhecidos, circundava-me. Sem a caixa de papelão quente nas noites frias.
Sem o afago atrás das orelhas. Sem a voz conhecida. Suspirei naquele vazio.
Não tive retorno. Um latido largado naquele vão. Não deu eco.
As luzes nas casas de longe já se apagavam."

- Patrícia Soares Viale
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